Anadia

Naquele dia senti-me como num zoológico, só que do lado de dentro das grades. A curiosidade sobre aqueles “paulistas” era enorme. E fomos entrando. A agência, como quase todas as casas em Anadia, nada mais era do que um corredor. No caso da agência do Banco do Brasil, um longo e largo corredor. Velhinhos às pencas, tentando receber seu FUNRURAL. E plantadores de inhame aos montes, já que era época de apresentação das propostas para o cultivo daquele tubérculo tão apreciado em Alagoas.

E os “paulistas” lá, abrindo caminho com malas e sacolas por entre aquele povaréu.

Um “dá licença” aqui, um “desculpe” ali, um “cuidado!” acolá e conseguimos percorrer aqueles vinte metros entre a entrada da agência e a porta da sala do gerente, o Andrade. A recepção foi fantástica, como só mesmo o brasileiro sabe exercitar, em especial o nordestino. O passo seguinte seria irmos até à casa que ele havia conseguido reservar para nós. A expectativa mantinha seus picos nos extremos.

E, olhem, até que não nos decepcionamos. Por essa e outras razões que uma dose de pessimismo antecipado sempre é boa. Nossa casa também era um corredor. Uma porta de lâminas e uma janela na frente e depois disso, só a janela e a porta lateral já lá no fundo, ligando a cozinha a um pequeno quintal cimentado. Ah! na frente havia também a entrada para a garagem, com um portão de madeira, vazado em grade. A garagem comunicava-se com aquele mesmo quintal cimentado. O quarto com janela, que era o da frente, logo foi apartado para acomodar nossos filhos, o mais novo deles com aqueles complicados problemas de bronquite alérgica. Na verdade, com a prática de natação, a bronquite tinha desaparecido. Mas não as alergias. Ficamos, Dayse e eu, com o quarto do meio, sem janelas. Coisa esquisita, sô! No terceiro quarto, muito pequeno e também sem ventilação, conseguimos, mais tarde, acomodar nosso guarda-roupas. Na verdade, podíamos considerar tudo aquilo, para os padrões Anadia, um luxo. E não é que até forro a pequena casa-corredor tinha, oras!

No dia seguinte nossa mudança já estava na cidade. Nossos cálculos para a sua viagem, em número de dias, desde Campo Grande (MS), foram acertados. Casa montada, fomos nos movimentar pela vizinhança. O carro não saia da garagem, pois tudo era perto. O banco, a cem metros; a escola, onde o nosso filho menor seria aluno e Dayse a primeira professora de educação física formada, quarenta metros, na esquina de cima à direita; a feira, que funcionava aos sábados, na esquina de cima também, mas à esquerda, defronte a farmácia e ao supermercadinho, ocupando a rua que circundava a praça central. Essa rua, aquela onde eu iria morar e as demais localizadas no perímetro central na pequena cidade eram todas calçadas com paralelepípedo. Ah! aspecto interessante: a delegacia ficava exatamente defronte a nossa casa.

Na segunda-feira, primeiras experiências na agência e primeiro contato mesmo, p’ra valer, com os demais funcionários e com o povo da região. Com os colegas, as primeiras dificuldades: pedi um lápis e deram-me uma caneta esferográfica; a minha lapiseira tinha o nome de apontador; o lápis que eu conhecia, ali se chamava grafite; e minha escrivaninha era o birô. Para a primeira proposta que um camponês me apresentou, tive de solicitar os préstimos do Ademar, nosso fiscal da CREAI, para servir de intérprete. Aquele linguajar do matuto, carregado de sotaque e rapidez, fazia imaginar-me em outro país. Não entendia absolutamente nada . O sujeito queria financiamento para construir uma cacimba. E eu sei lá o que era isso? Graças ao Ademar fiquei sabendo que cacimba correspondia ao nosso poço d’água. Logo em seguida chega à minha mesa um funcionário informando que o “marchand” estava lá no balcão, recolhendo os pedidos. Minha primeira reação foi de imaginar que alguém estaria vendendo quadros ou objetos de arte, de antiquário. Mas, não era nada disso, não. Acreditem, o tal “marchand” nada mais era do que aquela pessoa que conhecíamos como açougueiro.

Mas, rapidamente todas essas diferenças foram superadas e com semana, semana e meia, já falávamos o mesmo português.

Na escola da cidade, as peripécias da Dayse também aconteciam. Mulher dos sete instrumentos, já tinha se metido até na merenda. Também, não era para menos. Com tantos mantimentos recebidos do governo e guardados por não saberem o que fazer e como fazer, serviam às coitadas das crianças farinha de mandioca com sardinha em conserva. Ela mudou tudo aquilo e ensinou as merendeiras a cozinharem. Aos seus alunos, antes da educação física propriamente, inspirou-lhes o amor próprio, a alta-estima. Passou-lhes noções de higiene, de comportamento. E tudo isso, inclusive as aulas de educação física propriamente ditas, em plena praça pública, já que o colégio não dispunha de local apropriado. A transformação foi tanta que, já nas comemorações do aniversário da cidade, as alunas do colégio apresentaram uma demonstração de ginástica rítmica. Ainda incrédulo, eu tinha perdido a aposta com minha mulher. Apostara com ela que jamais iria conseguir transformar aquelas figuras desajeitadas e desarrumadas em belas meninas ginastas.

Nossa AABB era uma casa alugada defronte à agência do Banco. Ao final do expediente os funcionários iam para lá para jogarem totó, sinuca, conversa fora. Suas mulheres ficavam em casa. Acabamos com o clube do bolinha. Religiosamente eu e Dayse íamos tomar a nossa cervejinha de final de expediente — viram só, lá também tínhamos o nosso “happy hour” – e isso fez com que as outras esposas passassem a frequentar o local também., ficando cada vez mais animado.

Às sextas-feiras, uma hora da tarde, expediente encerrado, ia para casa já com o espírito diferente. Naqueles dias não retornaria à tarde para o Banco. Ao chegar em casa tudo estava pronto para irmos a Maceió. Carro carregado, cachorro já latindo impaciente lá atrás no bagageiro da Belina, era só dar a partida e ir desfrutar de algumas das mais belas praias de nosso país. Percorríamos aquele trecho de oitenta e dois quilômetros em quarenta minutos.

Num de nossos retornos de Maceió, domingo já com o sol vermelho se pondo no horizonte verde da cana-de-açúcar, atravesso meu carro em nossa ruazinha estreita e coloco sua dianteira sobre a calçada para guardá-lo na garagem. Desço do automóvel e, com toda a minha turma, começamos a descarregar as tranqueiras. Mas, peraí! Havia alguma coisa estranha no ar. Ouvíamos uma bela música, aquela que mais gostava dentre as interpretadas pelos The Carpenters. Seu nome era “Solitaire”. Do rádio de meu carro é que o som não vinha, pois estava desligado. De onde vinha então? Ainda cheguei a comentar com a Dayse:

– Puxa! Alguém ouvindo The Carpenters em Anadia? Nunca poderia imaginar que alguém aqui pudesse ouvir tal tipo de música, arrematei. Quanto bom gosto!

E continuamos a descarregar a Belina. Porém, uma nova música no ar e mais outra. Assim já era demais! Todas eram cantadas pelos Carpenters. Eu conhecia aquele disco! E era impossível ter dois exemplares dele lá em Anadia. Mas, de onde vinha o som? Colocamo-nos a procurar e não foi nem um pouco difícil identificar que os acordes vinham através da cela da cadeia, que ficava ao nível da calçada e defronte a nossa casa. Meu filho mais novo pendurou-se pela grade e perguntou ao preso que ouvia aquelas músicas que disco era aquele. O coitado do ladrão de galinha, todo preocupado, disse-lhe:

– É o disco de seu pai, que fulana me emprestou para que eu ouvisse durante o final de semana. Diga nada não p’rele! Senão ele vai mandar fulana embora. Bem, fulana era a nossa empregada doméstica.
Putz! Era o MEEEUUUUU disco dos Carpenters?! Rodando na cela da cadeia?!

Desnecessário dizer que fiquei muito puto nas calças. Demos uma boa esfregada, porém não mandamos a fulana embora, não. Afinal, já éramos íntimos dos policiais e dos presos já há algum tempo. Tanto que, no horário do Jornal Nacional, aumentávamos o volume do aparelho de televisão e deixávamos abertas as duas lâminas da porta da frente de nossa casa para que os presos, empoleirados nas grades, assistissem ao Cid Moreira e Sérgio Chapelin e, depois, à novela da oito. Em troca dessas gentilezas, tínhamos a certeza da vigilância de nossa casa, realizada tanto pelos policiais quanto pelos detentos.

Estendeu-se por quase dois anos nossa permanência naquela cidade. Ali, eu entendi que um gentil “não, muito obrigado!” pode ser uma afronta. Aliás, no palavreado deles, uma desfeita. E isso não é admitido entre pessoas amigas e/ou pessoas que se admiram ou são admiradas. Não se rechaça uma manifestação de agradecimento ou de carinho. Foi o que aprendi com um agricultor que, agradecido pelo financiamento que o Banco lhe havia feito para fundação de cana, perguntou-me o que eu preferia: um carneiro ou um peru. Respondi-lhe que nenhum dos dois, que eu estava simplesmente cumprindo com minha obrigação, que não havia necessidade de dar-me coisa alguma. Simplesmente respondeu-me que, se não escolhesse, iria deixar um dos dois amarrado na porta de minha casa no dia seguinte. E que não aceitaria a desfeita de uma devolução. Não teve jeito! Optei pelo carneiro, fartamente consumido por todos os nossos colegas num churrasco que fizemos na AABB. Enquanto me deliciei com o pernil e as costelas, assadas na brasa e temperados apenas com sal grosso, a turma nordestina preferiu saborear a buchada preparada com os miúdos do lanígero animal. Animal que quase se transformou num pomo da discórdia! Ou seria um carneiro da discórdia?

Por incrível que possa parecer, nossa permanência em Anadia representou o único período de minha vida bancária em que o salário de um mês encontrava-se com aquele do mês seguinte. Trabalhamos muito, vivemos intensamente, aprendemos e ensinamos muito, fizemos grandes amigos. E a saudade e a tristeza nos abateram quando de lá saímos, retornando a Campo Grande (MS), deixando para trás, em Maceió, nosso filho mais velho, já com dezoito anos e casado com uma menina daquela capital. Dessa união, que não tivemos como evitar, resultou o elo que nos manteve permanentemente conectados com Alagoas e, depois, com boa parte do nordeste brasileiro. Um ano depois, aos trinta e nove anos de idade, tornei-me o avô do Caio.

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