Um conto de Ano Novo

O ano era o de 1944, era da ditadura Getúlio Vargas no Brasil. O mundo enfrentava a Segunda Grande Guerra, que se descortinava nos palcos da Europa, África, Ásia e Oceania, notadamente. Na América do Sul, navios brasileiros foram atacados por belonaves nazistas, o que arrefeceu a simpatia getulista pelo nazismo.

Naquelas priscas eras, os pais dela viviam em Andradina -SP, mas a registraram em Araçatuba -SP, para onde se mudaram algum tempo depois. Os pais dele viviam em Orlândia -SP, mas nasceu em Araçatuba, onde moravam seus avós maternos e sua indefectível parteira portuguesa, Dona Joaquina Pedroso. O dia 31 de janeiro separou seus registros de nascimento. O dela realizado no dia 30 do primeiro mês o ano e o dele no dia 01 de fevereiro.

Dezessete anos depois, inacreditavelmente, seus olhares cruzaram-se uma, duas, infinitas vezes. Pode ter acontecido nas ruas vizinhas ao colégio de freiras, onde as alunas componentes da fanfarra treinavam para o desfile de sete de setembro. Ou, mais provavelmente, ocorreram algum tempo antes nas quadras desportivas, onde as equipes colegiais disputavam os jogos estudantis de Araçatuba, ela jogando basquetebol pelo Nossa Senhora Aparecida e ele pelo Instituto de Educação Manoel Bento da Cruz. Olhares cruzaram-se também por sobre a rua Duque de Caxias, naquele vai-e-vem entre a calçada do Araçatuba Clube, por onde ela passava, e o banco da pracinha à frente, onde a turma dos rapazes esperava a saída das alunas do Nossa Senhora Aparecida.

O banco ia esvaziando aos poucos, na medida em que a namorada de alguém passava e esse alguém, um a um, se dirigia até ela, tomava seus livros da mão para, num gesto cavalheiresco, aliviar-lhe o peso. Os mais ousados, ou aqueles que já tinham o consentimento dos pais para o namoro, davam-se as mãos. Ah… como ele desejava fazer o mesmo, um dia, com aquela menina da fanfarra e da equipe de basquetebol. Mas sua maldita timidez…

Timidez, s.f.
Inibição: estado de quem tem vergonha de se expôr; condição da pessoa tímida, acanhada: não conseguiu discursar e culpou sua timidez.

Continuaram os olhares, sem mudanças, mas um dia, no footing dos sábados e domingos à noite que acontecia na rua Oswaldo Cruz, entre a praça Rui Barbosa e o cine Bandeirantes, tudo iria mudar. Outro footing desenvolvia-se também no espaço interior da praça, próximo de grupos de amigos que se reuniam sempre no mesmo banco de cimento, em cujo encosto estava gravado o nome de alguma casa comercial da cidade. A fonte luminosa, no centro da praça, adornava e testemunhava tudo, principalmente os sonhos dos adolescentes, usando o barulho de suas águas e as luzes coloridas.

Depois de uns dois meses daquele vai-não-vai, finalmente na noite de um domingo, 03 de setembro de 1961, ele, incentivado e desafiado por dois amigos, cria coragem e atravessar os dez ou quinze metros que o separava de sua pretendida e de uma amiga, que fingiam conversar ao lado da fonte luminosa, mas que esperavam a iniciativa dele afinal. No trajeto, por sua cabeça passava uma única pergunta: – “O que direi?” Qualquer coisa, pois naquele momento não era mais possível recuar, ela já se virara em sua direção, aguardando o contato.

Resolveu pela expressão mais fácil e verdadeira, simples e direta, aproveitando-se que a amiga os deixara a sós: – “Quer namorar comigo?”. Ela nem imaginava como o ajudou ao responder simplesmente: – “Quero.”

Semana seguinte, quinta-feira, noite de sete de setembro, o primeiro passeio compromisso: assistir ao show de Francisco Egydio defronte à patrocinadora Norogás. Dentre as músicas cantadas, a magnífica “I Believe”, magistralmente cantada em sua versão com o nome de “Creio em Ti”.

Nem é preciso registrar que, a partir de então, ele entrou para o rol daqueles que, na saída das alunas do colégio de freiras, atravessava a rua, pegava o material escolar dela, davam-se as mãos e iam namorando, conversando. No caso deles, até a praça da Santa Casa. Dali para a frente ela seguia só para sua casa, ainda mais distante.

Aproveitaram bem os sucessos musicais da época. The Platters, com as baladas “Only You” e “Twilight Time”; Elvis Presley com “Are You Lonesome Tonight?”; Paul Anka e “Put Your Head On My Shouder”, Neil Sedaka e seus sucessos. Para mencionar poucos, pois não se esqueciam dos românticos boleros. Tanto que decidiram que a música do novo casal seria “Vereda Tropical”, com Gregório Barrios.

Ele nunca aprendeu a dançar. Quando muito um “dois pra cá e dois pra lá”. Ou seria “um pra cá e dois pra lá”? Que importância poderiam ter os passos quando, no entrelaçar de mãos e braços para a dança, corpos bem próximos, suas mentes e corações estavam completamente arrebatados por todas as nuances do amor e da paixão?

Pouco mais de três anos depois eles se casaram. O primeiro milagre aconteceu antes da hora, seu primeiro filho. Aproxima-se, no próximo dia quatro de janeiro, o aniversário de cinquenta e seis anos de casamento. Não uso a expressão “de união”, porque essa, na verdade e no próximo mês de setembro, completará cinquenta e nove aniversários.

Os bancos do jardim já não são os mesmos, não se faz mais o footing, já não se conhece mais ninguém naquele cenário, mas a fonte, que não é mais luminosa – contaram-me –, continua a jorrar e renovar em seu espelho de água, como uma pia de água benta fosse, a abençoar os novos amores que vem testemunhando.

Rock'n roll<< >>Se eu disser que estive de cara a cara com ela

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